Hoje em dia se fala muito sobre saúde mental, mas pouco sobre saúde mental para crianças e adolescentes. A verdade é que, mesmo com o objetivo de cuidar e proteger, sem as informações corretas, pais e responsáveis podem tornar suas crianças inseguras e mentalmente doentes.
Quando a saúde mental da criança começa a ser afetada?
Não é raro ouvir um adulto contar uma história completamente irreal para convencer uma criança a fazer alguma coisa. Também não é raro tentar assustá-la com personagens místicos de mundos imaginários com realidades incoerentes.
“Bicho papão, sai de cima do telhado e deixa essa criança dormir sossegada”
Não à toa, na vida adulta, essas mesmas crianças que foram enganadas, possuem mais dificuldade em confiar nos outros.
Tudo está ligado a quanto uma ideia é reforçada durante os primeiros anos de vida. É importante destacar que nossas sensações surgem de situações do passado, sejam elas conscientes ou não.
Tomando como exemplo um adulto que cresceu escutando a cantiga de ninar citada acima. É compreensível imaginar que ele se sinta desconfortável ao entrar em uma casa de telhado, mesmo que logicamente ele não entenda o porquê.
Quando os pais escondem a verdade dos filhos
Quando o assunto são pais que contam repetidas mentiras para os filhos, a questão se torna ainda mais complicada. É o caso de uma mãe que mente sobre o falecimento de um parente; ou sobre a separação dela com o marido, como acontece no livro “O Rinoceronte Frederico”.
No livro, o personagem principal, um garoto no início da adolescência, precisa viajar inúmeras dimensões psicológicas de sofrimento e solidão para tentar juntar as peças de um quebra cabeças criado pela própria mãe, ao inventar histórias e manipular acontecimentos.
Segundo a terapeuta argentina Laura Gutman, especializada em psicologia da maternidade, “independente do que os pais contem, as crianças sempre sabem a verdade, já que estão imersas no mesmo universo que os adultos”. Tendo isto em vista, quando os adultos não contam a verdade para as crianças, o único que estão fazendo é gerar sofrimento e loucura, em seus pequenos.
Causam sofrimento pois a criança se sente enganada e, logo, sozinha; tendo que lidar com o conflito entre acreditar no que o adulto diz ou no que vê e sente. Causa loucura pois, para um cérebro em formação, ser forçado a acreditar em algo que se sente ou se vê que não é verdadeiro, funciona como mergulhar a mão em um balde com água fria e ao mesmo tempo tentar se convencer de que a água do balde está quente. “Com o passar dos anos” — conta a terapeuta Laura Gutman —, “a criança cresce acreditando que toda a água gelada produz calor”.
O que se exprime desta analogia, de modo mais específico, é que essa criança será um adulto que visualiza o mundo sob uma ótica distorcida da realidade, o que pode ser por si só uma definição de loucura.
Como nasce a insegurança e a baixa autoestima em uma criança:
Quando uma criança percebe que é inútil conversar com um adulto, seja por não se sentir escutada, seja por não acreditar no que o adulto diz, dependendo do grau de sensibilidade dessa criança, a melhor solução pode lhe parecer conversar com si próprio.
De maneira consciente ou não, isto é o que acontece com o personagem principal de “O rinoceronte Frederico”: ele idealiza um segundo “eu”, exterior, na figura do Rinoceronte do zoológico em que a tia trabalha, para poder assim ter uma conversa segura consigo.
O problema é que, ao fazer isto, apesar de criar um elo criativo consigo e de se proporcionar autoconhecimento, essa criança se desconecta de um dos aspectos que mais caracteriza o que é ser humano: o aspecto social; o que pode lhe gerar transtornos no futuro.
Ainda no começo do livro, o adolescente recém chegado à Moçambique expressa preocupações e inseguranças ao tentar se aproximar de outras crianças:
Nesta cena, o personagem se preocupa com sua autoimagem e em ser aceito, enquanto, no mesmo momento, um ciclone está logo atrás dele, pronto para devorá-lo sem que ele sequer se dê conta disso. Este trecho exemplifica bem o que acontece com uma criança que cresce escutando mentiras; devido às tantas dificuldades e inseguranças sociais, ela acaba tendo problemas em se concentrar nas situações reais.
O problema de não confiar no que se sente
Na base de toda essa insegurança, está a dificuldade em descodificar as próprias sensações. “Eu sinto que a água está gelada, mas minha mãe está me dizendo que está quente. Minha mãe deve estar certa… eu não sou capaz de entender ou avaliar nada sozinho…”, conclui a criança. Essa insegurança se espalha em diversas áreas da vida, criando uma crença de incapacidade e inferiorização generalizada. Tudo isso por ter sido ludibriado, desde cedo, a não acreditar nos próprios sentidos.
Muitos adultos justificam as mentiras que contam às crianças como “necessárias”, já que, segundo eles, as crianças ainda não teriam maturidade emocional suficiente para entender as coisas. Entretanto, a consagrada terapeuta Laura Gutman diz em seu livro best seller “A biografia humana” que isso não é verdade, já que, ela afirma, “uma criança não é menos emocionalmente inteligente do que um adulto”.
Como gerar saúde mental em uma criança
É claro que não se deve expor todas as verdades à uma criança do mesmo modo que se faz com um adulto. Cada idade possui suas linguagens e códigos. Entretanto, esconder de uma criança assuntos importantes como a morte de um parente, os motivos da separação dos pais, uma adoção, ou doenças na família, significa, muitas vezes, abrir uma porta para os transtornos psicológicos de ordem social na vida adulta dessa criança.
A opção mais adequada é sempre dizer a verdade. Crianças merecem saber a verdade. Para alguns pode parecer óbvio o que digo, mas esses indivíduos de pouca idade também são indivíduos; e tais como qualquer adulto, também pensam e sentem coisas complexas, mesmo que por falta de vocabulário eles nem sempre consigam se expressar tão bem quanto nós. Na maioria das situações, crianças possuem percepções emocionais bastante parecidas com as dos adultos. Ignorar isto é um erro.
Outro erro nosso como sociedade é que, enquanto adultos, não contamos algumas coisas para as nossas crianças por acharmos que são apenas crianças, e não vão entender. Seguindo o nosso exemplo, quando essas crianças crescem, elas não nos contam suas coisas por acharem que somos velhos demais, e não vamos entender. Com isso, os laços não se fortalecem. Não existe mente humana saudável sem laços sociais de confiança.
Seja lá em que ponto dessa corrente você esteja, corte já este ciclo! Lembre-se: sentimentos não possuem idade; não são necessários diplomas para se desvendar olhares; e conexões verdadeiras só se estabelecem através da verdade. Sempre conte a verdade para as crianças!